Salvador já registrou 73 interrupções no transporte público devido à violência só neste ano, diz dados de Secretaria; veja


Foto: Ascom | Polícia Civil

A estudante Erika Conceição, de 20 anos, planejou a última terça-feira (31) como qualquer outra. Se arrumar, ir para o estágio, seguir para a universidade, voltar para casa. A rotina foi interrompida por um motivo fora do seu controle: a suspensão temporária do transporte público em Pau da Lima, bairro onde mora, por conta da insegurança na região após a morte do adolescente Caíque dos Santos Reis durante uma ação policial.

Na terça-feira, ela perdeu todos os compromissos. No dia seguinte, precisou recorrer às motos por aplicativo para ir e voltar. Desde então, teve que pensar em outras saídas para reduzir o prejuízo. Foi assim até a manhã desta segunda-feira (6), quando os ônibus voltaram a circular em Pau da Lima e nas regiões de Colina Azul e São Marcos – onde haviam parado pelo mesmo motivo.

“Isso nos prejudica bastante, porque altera a rotina e impede muitas pessoas de saírem do bairro. Temos que andar para um ponto que não é tão próximo, esse ponto enche, os ônibus e metrôs enchem. A gente chega muito mais atrasado e volta muito mais cedo para não ficar tanto tempo andando na rua à noite”, conta Erika.

Essa está longe de ser a única vez que bairros de Salvador ficam sem transporte público por conta da violência este ano. Entre janeiro e agosto, foram 73 ocorrências em 33 bairros da capital, conforme dados da Secretaria Municipal de Mobilidade (Semob). O número representa quase o dobro do mesmo período de 2024, quando foram registradas 38 suspensões temporárias.

Entre os lugares mais afetados, estão Tancredo Neves (7 interrupções), Engenho Velho da Federação (6), Mussurunga (5), Vale das Pedrinhas (5) e Vila Verde (5). Em setembro, pelo menos quatro outras suspensões foram noticiadas.

De acordo com a secretaria, o serviço é interrompido quando há “alguma situação que possa comprometer o atendimento seguro à localidade, levando em consideração a segurança dos usuários, da dupla que opera o veículo e do próprio ônibus”. Geralmente, quem bate o martelo é um grupo de crise composto por representantes da secretaria, da Polícia Militar, de empresas de ônibus e do Sindicato dos Rodoviários da Bahia.

Às vezes, porém, os próprios motoristas sentem a necessidade de parar. Roque Messias, de 46 anos, sabe bem disso. Rodoviário há 16 anos, ele afirma que, por mais que os rodoviários entendam o compromisso com a sociedade, precisam também preservar a integridade física.

“Não podemos esperar as coisas piorarem para fazermos uma escolha que pode representar uma queima de ônibus ou até a morte de um motorista, de um cobrador, ou mesmo de um passageiro. Nós agimos e depois comunicamos aos órgãos competentes, empresa, sindicato, Semob e a polícia, se essa já não estiver no local”, diz.

Em 2024, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas produziu, em parceria com o Observatório da Mobilidade de Salvador e o Instituto Fogo Cruzado, um levantamento sobre como a segurança pública afetou o transporte público em Salvador. Foram 85 interrupções no ano passado.

A pesquisa não tem dados atualizados, mas a percepção do impacto da violência na mobilidade urbana se mantém. Segundo Dudu Ribeiro, diretor da Iniciativa Negra, o exercício que as três organizações têm feito é o de demonstrar que, quando existe esse impacto, é necessário que a política de transporte faça parte da elaboração e das sugestões do campo da segurança.

“A gente se move nesse tema, muitas vezes, no senso comum, a partir da ação das polícias, mas é preciso pensar que segurança pública é a proteção prioritária da vida e, para o bom exercício da vida, a gente precisa circular. A política de segurança pública tem afetado a capacidade e a possibilidade das pessoas se moverem e, por isso, [a mobilidade] deve ser incluída nos debates sobre segurança, na elaboração das políticas, das soluções”, diz.

Daniel Caribé, membro do Observatório da Mobilidade, concorda. Doutor em Arquitetura e Urbanismo, ele defende que os problemas estão conectados. Dessa maneira, quando a insegurança poda o direito ao transporte, isso impacta, consequentemente, em outros direitos sociais: ao trabalho, à saúde, ao lazer.

Para Caribé, é preciso que a prefeitura da capital e o Governo do Estado estejam articulados para que os moradores não sejam duplamente prejudicados. “A população já está sendo penalizada pelo conflito e pela suspensão do transporte público. Ela não pode ser penalizada duas vezes. O conflito armado não deve acontecer, mas já que aconteceu, é preciso garantir que o transporte público não seja interrompido. E isso vai deixar de acontecer quando os rodoviários se sentirem seguros para trabalhar.”

Roque Messias é prova de que essa segurança parece uma realidade cada vez mais distante. “A gente sai de casa sem a certeza que vai voltar e ver a família. A insegurança faz parte do dia-a-dia, com isso a gente vem cada dia mais adoecendo. A categoria que mais adoece no Brasil é a de rodoviários, só no mês de setembro perdemos mais de cinco colegas de morte repentinas”, diz. Correio da Bahia

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